Ao sancionar, com veto parcial, o Projeto de Lei (PL) 2253/2022, que restringe as saídas temporárias de presos em regime aberto, o presidente Lula (PT) acatou a retirada deste benefício para a maioria das pessoas que tinham acesso a ele. Pelo texto, ficam proibidos de acessar a chamada “saidinha” as pessoas condenadas por crimes hediondos — o que inclui tráfico de drogas, correspondente a cerca de um terço da população carcerária — e por crimes com violência ou grave ameaça.
O presidente Lula manteve também o item proposto pelo Congresso Nacional que institui a obrigatoriedade de o preso passar pelo chamado exame criminológico para que tenha progressão de pena. Trata-se de um exame psicológico e comportamental em que é avaliada a aptidão do indivíduo para voltar ao convívio social, medindo supostamente a sua “periculosidade” e chance de reincidência.
Atualmente, o exame criminológico é realizado apenas quando pedido pelo juiz. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) já emitiu resolução (n°12/2011) atestando que tal exame não tem embasamento científico.
O principal veto do presidente não foi em relação às pessoas que poderão acessar a saidinha. Mas ao que esse segmento — agora restrito a condenados por crimes como furto e estelionato — poderão fazer nas saídas temporárias. Diferentemente do texto encaminhado pelo Congresso, que definia que as saídas seriam apenas para trabalho e estudo, o Planalto acrescentou a visita à família, que acontece normalmente em datas comemorativas, como Natal e Dia das Mães.
Até o momento, podiam acessar a saidinha as pessoas presas em regime semiaberto que tenham cometido qualquer tipo de delito, com exceção de crime hediondo resultando em morte. O benefício cabia para presos que obtivessem autorização judicial, bom comportamento e que tivessem cumprido 1/6 da pena em caso de réu primário ou ¼ em caso de reincidência.
Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do Ministério da Justiça apontam que, entre julho e dezembro de 2023, das 124.675 pessoas que fizeram uso da saída temporária, 94% cumpriram as regras estipuladas e voltaram aos presídios.
A sanção presidencial foi publicada no Diário Oficial da União na noite desta quinta-feira (11) e vai voltar ao Congresso, que derrubará ou não os vetos.
A reação do Congresso
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-RO), sinalizou que a análise sobre os vetos de Lula ao PL das Saidinhas pode ocorrer já na próxima sessão do Congresso, na quinta-feira (18). Para a derrubada, é preciso a maioria absoluta dos votos em cada uma das Casas: 257 deputados e 41 senadores.
Nas redes sociais, opositores ao governo já anunciam que devem derrubar os vetos presidenciais. Foi o caso, por exemplo, do deputado Alberto Fraga (PL-DF), membro da bancada da bala e presidente da Comissão de Segurança Pública da Câmara. Sergio Moro (União-PR) também postou que trabalhará pela derrubada e que Lula “ignora as vítimas e a segurança da sociedade”.
No legislativo, a aprovação do projeto teve protagonismo de políticos bolsonaristas, mas recebeu votos da base do governo, inclusive de parlamentares do PT e do PSOL. No Senado, o relator foi Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e os únicos votos contrários foram de Cid Gomes (PSB-CE) e Rogério Carvalho (PT-SE). Na Câmara o relator foi Guilherme Derrite (PL), que se afastou temporariamente do cargo de secretário de Segurança Pública de São Paulo justamente para isso.
“Maior precarização das vidas nas prisões”
Para Camila Tourinho, do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo, o veto de Lula foi “bastante tímido”, mantendo a saída temporária para visitas familiares para “um número muito pequeno de pessoas presas”.
“As pessoas condenadas por crimes não hediondos e sem violência ou grave ameaça em geral cumprem pena em regime aberto e podem ter suas penas substituídas por penas restritivas de direitos. Aquelas que recebem penas em regime fechado ou semiaberto costumam cumprir penas curtas, de modo que essa população não é expressiva no sistema carcerário”, explica Tourinho.
Com um crescimento de 44% na última década, a população carcerária no Brasil chega a 832.295 pessoas, segundo o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. É o terceiro país que mais encarcera no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
Dados da Senappen apontam que 31% das pessoas presas no país — que são em sua maioria negras, jovens e de baixa escolaridade — respondem por crimes relacionados a drogas. No caso das mulheres encarceradas, a taxa é de 51%.
“Imaginamos que serão gravíssimas as consequências da sanção da lei e a expectativa é de um efeito cascata que poderá ser verificado rapidamente no crescimento da população carcerária e na precarização ainda maior das condições de vida nas prisões do país”, destaca Carlos Preto, abolicionista penal e membro da Frente pelo Desencarceramento de São Paulo.
Em entrevista ao Central do Brasil, Felippe Angeli, coordenador de advocacy da Platafoma Justa, avalia que “o governo parece ter dificuldades de se posicionar sobre a segurança pública”.
“A reboque de uma fala dura dos segmentos ligados à extrema direita, o governo se perde ao não colocar uma contraposição, porque cai numa falsa dicotomia entre respeitar os direitos humanos e cumprir a lei de forma rígida. Não há dicotomia nenhuma”, opina Angeli.
Exame criminológico obrigatório pode promover “colapso”
A volta da obrigatoriedade do exame criminológico, que tinha sido retirado da Lei de Execução Penal em 2003, é destacada por pesquisadores e ativistas como um dos pontos preocupantes da nova lei. Como um obstáculo para que presos passem do regime fechado para o semiaberto, a previsão é que as cadeias fiquem ainda mais lotadas. Atualmente, há 236 mil pessoas presas a mais do que vagas disponíveis.
“No século 19 o Brasil já usava de dispositivos pseudocientíficos para enclausurar mulheres e pobres que não ‘se comportavam adequadamente’, em hospícios, manicômios e mosteiros”, lembra Carlos Preto. “No pós-abolição, a República utilizou destes dispositivos contra negros e pobres confinados aos montes em instituições hoje reconhecidas como inaceitavelmente violentas e desumanas”, diz.
“Sem uma regra bem definida, a arbitrariedade ancorada no racismo, no sexismo e no ódio aos pobres fará com que a maioria dos condenados cumpram a pena integralmente, ignorando os regulamentos de progressão de pena e de ressocialização previstos na Lei de Execuções Penais”, avalia Preto, que também integra a Amparar (Associação de Amigxs e Familiares de Presxs).
“Não há qualquer regulamentação com relação a quem deve elaborar o exame e quais devem ser os parâmetros para a avaliação”, alerta Camila Tourinho. No estado de São Paulo, por exemplo, o procedimento é feito normalmente por psicólogos e assistentes sociais. Em alguns casos, psiquiatras.
“Caso interpretada literalmente a nova redação da lei”, avalia Tourinho, haverá um “colapso do sistema prisional, já que é inexequível a determinação de realização de exame criminológico em todos os pedidos de progressão de regime, tendo em vista a ausência de profissionais em número suficiente para tanto”.
De acordo com a Senappen, para todo o sistema prisional brasileiro há 317 psiquiatras, 1.511 assistentes sociais e 1.345 psicólogos.
Apenas no estado de São Paulo, explica a defensora, “estima-se o gasto anual projetado de mais de R$ 66 milhões caso o exame seja determinado pelo Judiciário para todas as progressões de regime. Esse número é seis vezes maior do que o orçamento da Secretaria Estadual de Políticas para a Mulher em 2024, com pouco mais de R$ 10 milhões, e também seis vezes mais do que todo o orçamento de políticas estaduais para egressos do sistema prisional”.
Edição: Matheus Alves de Almeida
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